quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Lembro-me


Lembro-me de um carro a pedais, vermelho e com um assento preto. Tinha um volante de plástico, e uns pneus de borracha negra. Pedalava no pátio até me fartar, e não me lembro de tal ter alguma vez ocorrido. A minha vida era a de uma criança, e que calhava bem, visto que eu era, de facto, uma criança. Era feliz. Os dias sucediam-se, com as suas rotinas e com as suas novidades. Gostava da escolinha, mas não gostava de todos os que lá andavam. Se me pedirem para concretizar, posso dizer-vos que detestava aquele pequeno gorila das montanhas que teimava em correr atrás de mim em todos os intervalos das aulas. Aulas? Mas quem é que tem aulas na pré- primária? Gostava da casa da ama, mas julgo que teria sido melhor se não me dessem vinho a provar, às refeições. Gostava de brincar na varanda, mas teria preferido refrear a curiosidade que me levou a atirar uma miniatura de um Renault 9 vermelho para o tecto de umas garagens, vários andares abaixo daquele onde me encontrava. Era o meu carrito preferido e descobri da pior maneira que não era inquebrável. Já agora, gostava de ter tido a personalidade vincada que me permitisse, naquele fatídico Carnaval, não me terem vestido de senhora que dança em ranchos. Deve haver um substantivo que defina uma senhora que dance em ranchos. Eu é que não faço ideia de qual seja, daí que diga senhora que dança em ranchos. Voltando ao fatídico Carnaval, ter acontecido já foi mau o suficiente, escusavam de bater no ceguinho tirando fotos e, pior ainda, mandando-as revelar e terem-nas guardado nessa coisa pirosa a que se chama álbuns de fotografias. Pacóvios cruéis. Depois ninguém se lembra do fulano que tirou a fotografia, só se lembram que o rapazinho que ali está vestido de, lá está, senhora que dança em ranchos, é hoje em dia, um homem másculo, bonito e charmoso. O que prova que mesmo os homens másculos, bonitos e charmosos têm, como o comum dos mortais, dias maus na vida. Muitos de vós estarão neste preciso momento a pensar: “ah, que giro, é mesmo verdade, também tive dias maus”. Calma rapazes, as probabilidades ditam que vocês provavelmente se enquadrarão no lote dos comuns dos mortais.

Lembro-me de ir na rua com o meu rico progenitor, de mão dada com ele, junto a uma passadeira, nesse grande país que é a Francha (tem muito mais pinta dizer francha do que dizer frança). Aproveito para dizer que um tipo vendado e com uma mola no nariz que ouça a palavra francha sabe automaticamente duas coisas. Que é Agosto e que está na presença de um emigrante fardado com uns chinelos de enfiar no dedo, calções de praia berrantes (muito provavelmente de surfista), uma camisola de alças branca (com um tufo de pêlos negros a sair da parte do corpo a que vulgarmente se chamaria de peito, mas que no tradicional emigrante se chama de início da barriga). O tipo vendado dá então graças a Deus pela mola no nariz, evitando assim o aroma a mescla de cebola e leite azedo que sai daquela parte do corpo a que vulgarmente se chama de axila, mas que no tradicional emigrante se denomina de início (mais um) da barriga. Estou a gozar com a barriga dos emigrantes, mas os biólogos adoram-nas. Encontram-se mais espécies novas de insectos por lá do que em todo o continente Africano. Os biólogos defendem que todos são excitantes, mas eu sou capaz de apostar que também se encontram por lá uns chatos. Mas dizia eu que o meu rico progenitor me deu a mão, junto a uma passadeira. E eu, com uns tenros quatro anitos, viro-me para ele e digo:” tens mais cigarros, pai?”. Esperem, isso foi no regresso a casa. Quando íamos no percurso de ida, disse-lhe: ”pai, quando eu for grande e tu pequenino, eu é que te dou a mão para passarmos na passadeira”. True story.  Ainda hoje o meu pai conta isso, apenas umas setecentas vezes por ano.

Lembro-me de um belo dia ter querido voar com a minha bicicleta por cima de um abismo. Como encontrar um abismo é difícil e eu tinha que lanchar às quatro da tarde, decidi que uma vala com uns gigantescos 30 centímetros de largura e uns bons quinze ou vinte centímetros de profundidade serviriam perfeitamente. “Primeiro esta vala”, pensei eu, “depois o Evereste”. Vejam bem o tipo de pensamentos que eu tinha com sete anitos. Peguei num sacho e cavei a vala. Fiz um fole na mão, mas enchi-me de coragem e rasguei a pele empolada com os dentes, sugando a aguadilha salgada. Reparei que o fole, que até então doía, ardia agora. “Preferia a dor ao ardor”, lembro-me de ter pensado. “Agora é tarde, aguenta-te”, continuei a pensar. Fartei-me de pensar, nesse dia. Peguei então na bicicleta e desatei a pedalar estrada acima até me cansar, o que geralmente acontecia ao fim de uns cinco ou seis metros. Saltei da bicicleta e coloquei a mão por cima dos olhos, tentando descortinar a vala, ao longe, no horizonte. Escrutinei a linha de pinheiros, ao longe, a cerca de dois quilómetros dali. Nada de vala, por ali. Desci o olhar até às casas, que soltavam fumo pelas chaminés. “Talvez a vala esteja por detrás das colunas de fumo”, pensei. Não estava. Apercebi-me então que estava a apenas cinco ou seis metros do ponto onde eu me encontrava. Raios. Empurrei a custo a bicicleta estrada acima até ficar mesmo muito cansado. Desta vez optei por não avaliar a distância até à vala, até porque, de tão cansado que estava, se porventura julgasse que estava ainda demasiado perto, teria provavelmente optado por deixar a bicicleta onde estava e ir fazer uma nova vala, mais abaixo do que a outra. Assim, para evitar novo fole nas mãos, saltei para cima da bicicleta e pedalei como um doido. O que não foi difícil, uma vez que eu era, reconheço, um pouco doido. Vou direito à vala e grito de excitação “u-huuuu”. Trinta segundos mais tarde, gritava ainda da mesma maneira. Não, o voo não demorou trinta segundos. Mas garanto-vos que se o pneu da vossa bicicleta embater violentamente na parede lateral de uma vala e vocês esmagarem os testículos no guiador da bicicleta, berram como uns capados durante trinta segundos. Lembro-me da minha rica mãezinha a descer as escadas em pânico, e lembro-me de me ter espalhado uma pomada milagrosa nas minhas partes privadas. E de me ter ordenado para nunca, mas mesmo nunca mais fazer aquilo. Um minuto mais tarde estava eu a berrar outra vez, outra vez há cerca de trinta segundos. Irra. Mas percebi, finalmente, isto enquanto a minha mãe me aplicava nova camada de pomada naquele que já era, com o inchaço, o maior dos meus membros, que me faltava uma rampa. Que foi o que fiz de seguida, tendo assim iniciado uma carreira de três ou quatro saltos que me custou um fole nas mãos e duas cacetadas valentes nos testículos. Farto-me rápido das coisas, o que é que querem.

Lembro-me perfeitamente do meu primeiro beijo. Tinha voltado da escola com a sortuda que iria ser a primeira menina a receber um beijo meu nos lábios. Ela ainda não o sabia. Provavelmente, eu também não. A menina chamava-se Vanda, só para que não julguem que estou para aqui a inventar. Tínhamos a tenra idade de seis anos e uns meses. Agora que penso nisso, acho que a Vanda seria demasiado nova para estas andanças. Enfim, as raparigas estão sempre a desencaminhar os rapazes. Ainda assim, consegui convencê-la a passarmos por detrás do barracão da lenha. Nesse local arredado de olhares curiosos, e com aquele cheirinho a mofo tão característico, lá a consegui convencer a dar-me um beijo na face. Sem recorrer a álcool ou a violência física. E é neste instante que reside o meu golpe de mestre e, vá, de génio. Quando a Vanda se aproxima para me dar um beijo na bochecha, eu viro rapidamente a cara e dou-lhe um valente beijo nos lábios. Estivemos, à vontade, uns setecentos milésimos de segundo em contacto, lábios com lábios. Ela corou muito. Eu corei menos. Era um sabidão. E foi assim o meu primeiro beijo. Correu francamente bem, a minha técnica de aproximação aos lábios dela foi de verdadeiro profissional das novelas, e tive o cuidado de ter mascado uma pastilha de morango minutos antes do acto, não fosse ela queixar-se que eu cheirava mal. E nem me deu uma estalada no fim, algo que, a acontecer, me teria deixado provavelmente sem reacção e, pior, com uma bochecha vermelhusca. Graças a Deus.

Lembro-me de, numa ocasião, reparar que um colega meu da escola preparatória estava a chatear uma miúda por quem eu até nutria alguma simpatia. Vai daí que eu, armado em cavaleiro defensor dos fracos e oprimidos, me tivesse chegado a ele e lhe tivesse dito para parar com aquilo. Coisa que o rapaz não fez. Declinou educadamente a minha sugestão dando-me uma valente patada que só por milagre não me atingiu no escroto. No preciso instante em que eu lhe ia quebrar o pescoço em meia dúzia de sítios e lhe ia deixar a cara com aspecto de damasco maduro, chega o professor. Sempre na hora certa. E o rapaz lá continuou com o pescoço no sítio e com as trezentas borbulhas com pus que tinha na cara intocadas. Após a aula, fui ter com ele, e dei-lhe um tapinha no ombro. O rapaz virou-se, e apanhou um valente murro, bem em cheio na bochecha. Caiu redondo, e assim ficou, pelo menos um minuto. Depois, e isto é que nunca acontece nos filmes, não passou a respeitar-me imediatamente. Desatou a correr atrás de mim, como se eu tivesse alguma culpa da situação. Realmente. Há pessoas que não aprendem a assumir a sua responsabilidade nas coisas.

Lembro-me, ao pensar em todos estes episódios que descrevo acima, de que o mundo era um lugar melhor, antes. Ou será que era eu que ainda não tinha perdido a inocência, nessa altura? Talvez seja isso, agora que penso no assunto. O meu mundo era um sítio onde uns podiam confiar nos outros, em que a honestidade e a amizade eram valores comuns e inquebrantáveis. Corria mais do que agora, mas nunca de um lado para o outro, e tinha todo o tempo do mundo, nas mesmas vinte e quatro horas que hoje não dão para nada. As pessoas não tinham duas caras, e tinham coração. As noites eram para dormir tranquilamente, sem medo do dia seguinte. O humor era uma virtude, e não um defeito. A inteligência era bem vinda, e não temida e invejada.

Lembro-me, agora que penso nisso, que tenho saudades do meu mundo.

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