Lembro-me de um carro a pedais,
vermelho e com um assento preto. Tinha um volante de plástico, e uns pneus de
borracha negra. Pedalava no pátio até me fartar, e não me lembro de tal ter alguma
vez ocorrido. A minha vida era a de uma criança, e que calhava bem, visto que
eu era, de facto, uma criança. Era feliz. Os dias sucediam-se, com as suas
rotinas e com as suas novidades. Gostava da escolinha, mas não gostava de todos
os que lá andavam. Se me pedirem para concretizar, posso dizer-vos que
detestava aquele pequeno gorila das montanhas que teimava em correr atrás de
mim em todos os intervalos das aulas. Aulas? Mas quem é que tem aulas na pré-
primária? Gostava da casa da ama, mas julgo que teria sido melhor se não me
dessem vinho a provar, às refeições. Gostava de brincar na varanda, mas teria
preferido refrear a curiosidade que me levou a atirar uma miniatura de um
Renault 9 vermelho para o tecto de umas garagens, vários andares abaixo daquele
onde me encontrava. Era o meu carrito preferido e descobri da pior maneira que
não era inquebrável. Já agora, gostava de ter tido a personalidade vincada que
me permitisse, naquele fatídico Carnaval, não me terem vestido de senhora que
dança em ranchos. Deve haver um substantivo que defina uma senhora que dance em
ranchos. Eu é que não faço ideia de qual seja, daí que diga senhora que dança
em ranchos. Voltando ao fatídico Carnaval, ter acontecido já foi mau o
suficiente, escusavam de bater no ceguinho tirando fotos e, pior ainda,
mandando-as revelar e terem-nas guardado nessa coisa pirosa a que se chama álbuns
de fotografias. Pacóvios cruéis. Depois ninguém se lembra do fulano que tirou a
fotografia, só se lembram que o rapazinho que ali está vestido de, lá está,
senhora que dança em ranchos, é hoje em dia, um homem másculo, bonito e
charmoso. O que prova que mesmo os homens másculos, bonitos e charmosos têm,
como o comum dos mortais, dias maus na vida. Muitos de vós estarão neste
preciso momento a pensar: “ah, que giro, é mesmo verdade, também tive dias
maus”. Calma rapazes, as probabilidades ditam que vocês provavelmente se
enquadrarão no lote dos comuns dos mortais.
Lembro-me de ir na rua com o meu
rico progenitor, de mão dada com ele, junto a uma passadeira, nesse grande país
que é a Francha (tem muito mais pinta dizer francha do que dizer frança).
Aproveito para dizer que um tipo vendado e com uma mola no nariz que ouça a
palavra francha sabe automaticamente duas coisas. Que é Agosto e que está na
presença de um emigrante fardado com uns chinelos de enfiar no dedo, calções de
praia berrantes (muito provavelmente de surfista), uma camisola de alças branca
(com um tufo de pêlos negros a sair da parte do corpo a que vulgarmente se
chamaria de peito, mas que no tradicional emigrante se chama de início da
barriga). O tipo vendado dá então graças a Deus pela mola no nariz, evitando
assim o aroma a mescla de cebola e leite azedo que sai daquela parte do corpo a
que vulgarmente se chama de axila, mas que no tradicional emigrante se denomina
de início (mais um) da barriga. Estou a gozar com a barriga dos emigrantes, mas
os biólogos adoram-nas. Encontram-se mais espécies novas de insectos por lá do
que em todo o continente Africano. Os biólogos defendem que todos são
excitantes, mas eu sou capaz de apostar que também se encontram por lá uns
chatos. Mas dizia eu que o meu rico progenitor me deu a mão, junto a uma
passadeira. E eu, com uns tenros quatro anitos, viro-me para ele e digo:” tens
mais cigarros, pai?”. Esperem, isso foi no regresso a casa. Quando íamos no
percurso de ida, disse-lhe: ”pai, quando eu for grande e tu pequenino, eu é que
te dou a mão para passarmos na passadeira”. True story. Ainda hoje o meu pai conta isso, apenas umas
setecentas vezes por ano.
Lembro-me de um belo dia ter
querido voar com a minha bicicleta por cima de um abismo. Como encontrar um
abismo é difícil e eu tinha que lanchar às quatro da tarde, decidi que uma vala
com uns gigantescos 30 centímetros de largura e uns bons quinze ou vinte centímetros
de profundidade serviriam perfeitamente. “Primeiro esta vala”, pensei eu,
“depois o Evereste”. Vejam bem o tipo de pensamentos que eu tinha com sete
anitos. Peguei num sacho e cavei a vala. Fiz um fole na mão, mas enchi-me de
coragem e rasguei a pele empolada com os dentes, sugando a aguadilha salgada. Reparei
que o fole, que até então doía, ardia agora. “Preferia a dor ao ardor”,
lembro-me de ter pensado. “Agora é tarde, aguenta-te”, continuei a pensar.
Fartei-me de pensar, nesse dia. Peguei então na bicicleta e desatei a pedalar
estrada acima até me cansar, o que geralmente acontecia ao fim de uns cinco ou
seis metros. Saltei da bicicleta e coloquei a mão por cima dos olhos, tentando
descortinar a vala, ao longe, no horizonte. Escrutinei a linha de pinheiros, ao
longe, a cerca de dois quilómetros dali. Nada de vala, por ali. Desci o olhar
até às casas, que soltavam fumo pelas chaminés. “Talvez a vala esteja por
detrás das colunas de fumo”, pensei. Não estava. Apercebi-me então que estava a
apenas cinco ou seis metros do ponto onde eu me encontrava. Raios. Empurrei a
custo a bicicleta estrada acima até ficar mesmo muito cansado. Desta vez optei
por não avaliar a distância até à vala, até porque, de tão cansado que estava,
se porventura julgasse que estava ainda demasiado perto, teria provavelmente
optado por deixar a bicicleta onde estava e ir fazer uma nova vala, mais abaixo
do que a outra. Assim, para evitar novo fole nas mãos, saltei para cima da
bicicleta e pedalei como um doido. O que não foi difícil, uma vez que eu era,
reconheço, um pouco doido. Vou direito à vala e grito de excitação “u-huuuu”.
Trinta segundos mais tarde, gritava ainda da mesma maneira. Não, o voo não
demorou trinta segundos. Mas garanto-vos que se o pneu da vossa bicicleta
embater violentamente na parede lateral de uma vala e vocês esmagarem os
testículos no guiador da bicicleta, berram como uns capados durante trinta
segundos. Lembro-me da minha rica mãezinha a descer as escadas em pânico, e
lembro-me de me ter espalhado uma pomada milagrosa nas minhas partes privadas.
E de me ter ordenado para nunca, mas mesmo nunca mais fazer aquilo. Um minuto
mais tarde estava eu a berrar outra vez, outra vez há cerca de trinta segundos.
Irra. Mas percebi, finalmente, isto enquanto a minha mãe me aplicava nova
camada de pomada naquele que já era, com o inchaço, o maior dos meus membros,
que me faltava uma rampa. Que foi o que fiz de seguida, tendo assim iniciado
uma carreira de três ou quatro saltos que me custou um fole nas mãos e duas
cacetadas valentes nos testículos. Farto-me rápido das coisas, o que é que
querem.
Lembro-me perfeitamente do meu
primeiro beijo. Tinha voltado da escola com a sortuda que iria ser a primeira
menina a receber um beijo meu nos lábios. Ela ainda não o sabia. Provavelmente,
eu também não. A menina chamava-se Vanda, só para que não julguem que estou
para aqui a inventar. Tínhamos a tenra idade de seis anos e uns meses. Agora
que penso nisso, acho que a Vanda seria demasiado nova para estas andanças.
Enfim, as raparigas estão sempre a desencaminhar os rapazes. Ainda assim,
consegui convencê-la a passarmos por detrás do barracão da lenha. Nesse local
arredado de olhares curiosos, e com aquele cheirinho a mofo tão característico,
lá a consegui convencer a dar-me um beijo na face. Sem recorrer a álcool ou a
violência física. E é neste instante que reside o meu golpe de mestre e, vá, de
génio. Quando a Vanda se aproxima para me dar um beijo na bochecha, eu viro
rapidamente a cara e dou-lhe um valente beijo nos lábios. Estivemos, à vontade,
uns setecentos milésimos de segundo em contacto, lábios com lábios. Ela corou
muito. Eu corei menos. Era um sabidão. E foi assim o meu primeiro beijo. Correu
francamente bem, a minha técnica de aproximação aos lábios dela foi de
verdadeiro profissional das novelas, e tive o cuidado de ter mascado uma
pastilha de morango minutos antes do acto, não fosse ela queixar-se que eu
cheirava mal. E nem me deu uma estalada no fim, algo que, a acontecer, me teria
deixado provavelmente sem reacção e, pior, com uma bochecha vermelhusca. Graças
a Deus.
Lembro-me de, numa ocasião,
reparar que um colega meu da escola preparatória estava a chatear uma miúda por
quem eu até nutria alguma simpatia. Vai daí que eu, armado em cavaleiro
defensor dos fracos e oprimidos, me tivesse chegado a ele e lhe tivesse dito
para parar com aquilo. Coisa que o rapaz não fez. Declinou educadamente a minha
sugestão dando-me uma valente patada que só por milagre não me atingiu no
escroto. No preciso instante em que eu lhe ia quebrar o pescoço em meia dúzia
de sítios e lhe ia deixar a cara com aspecto de damasco maduro, chega o
professor. Sempre na hora certa. E o rapaz lá continuou com o pescoço no sítio
e com as trezentas borbulhas com pus que tinha na cara intocadas. Após a aula,
fui ter com ele, e dei-lhe um tapinha no ombro. O rapaz virou-se, e apanhou um
valente murro, bem em cheio na bochecha. Caiu redondo, e assim ficou, pelo
menos um minuto. Depois, e isto é que nunca acontece nos filmes, não passou a
respeitar-me imediatamente. Desatou a correr atrás de mim, como se eu tivesse alguma
culpa da situação. Realmente. Há pessoas que não aprendem a assumir a sua
responsabilidade nas coisas.
Lembro-me, ao pensar em todos
estes episódios que descrevo acima, de que o mundo era um lugar melhor, antes.
Ou será que era eu que ainda não tinha perdido a inocência, nessa altura?
Talvez seja isso, agora que penso no assunto. O meu mundo era um sítio onde uns
podiam confiar nos outros, em que a honestidade e a amizade eram valores comuns
e inquebrantáveis. Corria mais do que agora, mas nunca de um lado para o outro,
e tinha todo o tempo do mundo, nas mesmas vinte e quatro horas que hoje não dão
para nada. As pessoas não tinham duas caras, e tinham coração. As noites eram
para dormir tranquilamente, sem medo do dia seguinte. O humor era uma virtude, e
não um defeito. A inteligência era bem vinda, e não temida e invejada.
Lembro-me, agora que penso nisso,
que tenho saudades do meu mundo.
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